limpo minha casa
para apagar teus vestígios:
os fios de cabelo
- escuros como a primeira noite
desde que partiste -
teu reflexo no espelho
que inda consigo ver
e o cheiro de fruta misteriosa
impregnado pelo quarto
despejo em herméticos sacos plásticos
a poeira do que restou de nós:
pensamentos e palavras
atos e omissões
e qualquer indício de presença
os cacos do que não fomos
- com cuidado eu os descarto
pois cortam feito faca.
organizo meus cômodos
meus móveis repletos de tuas digitais
e cansado da lida
me sento no sofá que tanto te abrigou:
sou eu só, aqui, em mim.
28/08/2019
Vestígios
25/08/2019
Carmesim
tuas unhas carmesim
rasgando minha embalagem:
meus dias e noites
meu nome e meus versos
dispostos, carmesim, sobre meu silêncio
- as palavras que não dissemos
voltaram ao dicionário:
restou um afeto,
que guardei com teu retrato
memória que se dissolverá.
tua boca carmesim
a voz ecoando em meus espaços:
a sala, o quarto, o ouvido
meu coração, carmesim, amplo ambiente
onde festejo e celebro a vida
e também enterro meus fracassos:
o amor que não houve
o filho que não existiu
o futuro que era vidro e se quebrou.
espero uma nova manhã carmesim
vermelha como o sangue das paixões
como um sonho que se sabe vivo
como a pele rubra do tempo
que renova minha crença e meu querer.
11/08/2019
Fera
vive dentro de mim uma fera
que ora ruge e me assusta
com sua voz de intempérie
mandando que eu desista
de tudo
e de mim
e de você
e daquilo que nem ainda sei
[se existirá
uma fera em mim:
bicho altivo, cor de ódio
faiscantes olhos iluminando
minha insegurança
meu medo da morte
minha vida medíocre
de poeta e professor
em mim mora um animal
que me mastiga e deglute
e eu viro um pedacinho de nada
palavra calada
verso triste
vez em quando esse bicho
dorme um sono profundo
cansado de tanto se mostrar grande
então eu aproveito
e o prendo de volta bem dentro de mim
(posto que o crio há anos)
e canto-lhe canções de ninar
afagando-lhe os pelos revoltos
com minha poesia e o amor
que trago entre os dedos.
10/08/2019
Poema de aniversário
onde ecoam tuas descobertas
tua constelação formada e cintilante
tuas órbitas e do que delas se desprende:
o universo na tua cabeça
- céu escuro às vezes
claro sorriso iluminando o dia:
renovando as possibilidades de mudança
pois tudo ecoa e vibra e vive
mesmo quando a terra seca
e faltam horizontes
(as nuvens são feitas de matéria mutável enquanto que o sonho é intransponível)
e tudo é cor: os traços da pele,
a luz que de ti emana,
e mesmo o que te assenta
e se cala,
e aquilo que ainda te falta
e vem de lá de onde não tem nome:
da dança dos astros, do teu corpo
- rota imprevisível, que ensaia uns passos
e sente e canta e quer.
e na primeira manhã do teu novo ciclo
seja sol, colorindo teu próprio caminho.
07/08/2019
Manual de Ícaro
para voar, você precisará de:
- duas asas inventadas, feitas de tempo etéreo;
- um tanto de amplo espaço, que pode ser medido pela distância da saudade;
- ternura convém, como proteção e
- um sopro forte de coragem, a de voltar e a de olhar a vida pelo alto.
as asas podem ser feitas misturando 'liberdade de saber quem se é'
e 'memórias compartilhadas de pertencimento',
para dar liga.
as asas devem ser cuidadosamente abertas: observe se nelas não há sombras do medo.
as plenas condições de voo se dão
nas primeiras horas do dia
quando o sol ainda não despontou
e o céu ainda tem a cor do amor
e dos amantes.
ao planar, se lembre do mais importante:
manter o equilibrio e o querer-bem.
04/08/2019
De repente
de repente
foi um vento
que passou pela gente
e dispersou palavras
- as que falam de nós
e despediu as nuvens
cinzas grossas
que cobriam um afeto
e bagunçou meu jeito de poeta
e meu poema ficou
desse jeito assim:
enventado.
*
de repente, não mais que de repente
esse vento trouxe o que se sente:
um gosto de nós
que inventamos na pele
do tempo.