29/09/2019

o dever do poeta

caberá ao poeta deste século
contar a história
do que restar de humanidade:
nas mãos do poeta
a palavra que se escreve
polifônica e inexplicável
captando o mundo que se arruina.

(pululam nos jornais letras mortas
nos noticiários nas leis no rosto
de quem morre a cada dia para se manter vivo há o gosto acre de silêncio e pesar)

é papel do poeta ler a vida
e explicar às futuras gerações
o que nos sucedeu:
como João, também cantaremos
o apocalipse
- não em sonhos e visões,
no cotidiano que se descortina
diariamente.

(fome, guerra, peste e morte em seus cavalos blindados atropelam as gentes todas que insistem em sobreviver)

o que sobra ao poeta
é inventar sua poesia
mas deve se apressar:
amanhã, talvez, as palavras já tenham
abandonado o dicionário
e sobrará só a barbárie
que não pensa em nos deixar.

23/09/2019

Chuva

chove em cuiabá
como se nunca chovera antes
e a palavra chuva
só existisse no romance
de gabriel garcía márquez
chove e sinto de novo
o cheiro de pátria, terra em que vivo
e trabalho e suo e ajo
chove uma água suja, de certo que sim:
ácida como a vida entre os trópicos
devastando a sede desses animais
tudo o que passou, chove
tudo o que virá, chove
e chove no beco do candeeiro
no goiabeiras
sobre os automóveis
entre os viadutos
chove em cuiabá:
como se não parecesse chuva
e fosse só um alento
gesto do mundo que ainda respira

14/09/2019

Fruta

desprendeu-se do galho o amor
de maduro foi ao chão:
um fruto simbiótico
cor de gente, gosto de sonho
se intocado, adubará a terra
decompondo tudo aquilo que é memória
(os gestos palavras intenções
e também aquilo que não foi mas tomou lugar no que era nós)
alimento para os insetos
matéria viva que se transforma
- eis o mistério da fé:
o amor no chão, o chamamos podre
mas é um ventre que criará nova árvore
vida rompendo o amanhã.