06/12/2020

Nau

Uma caravela baloiça sobre as 

mangueiras 

                  dos quintais cuiabanos:

é meu pensamento que atravessa

longos destinos

no meu leme o meu lema:

- navegar é preciso, o viver não é preciso.  

13/08/2020

Meu Nome

Meu nome, eu não o sabia de princípio:
Foram as vozes familiares que me        [acostumaram a ele.
Nome que me coloca no mundo como alguém
Diferente das pedras e demais objetos do dia a dia: nome pelo qual me chamam, nome que inscrevo em documentos, nome que tantas vezes rabisquei entediado.
Mas que é, afinal, um nome? 

Essa identificação, uma pele que me deram, um biombo em que me caibo, um conjunto de fonemas designados: meu nome, mais consoantes que vogais, mais forma que conteúdo. 

Quando me olho no espelho, o que vejo é um agregado de matéria: carne, músculo, ossos, pelos. Acaso todas essas coisas caberão no meu nome? 

Sinto em mim o intervalo: de letra para letra, som para som. Busco uma rota alternativa no caminho no qual as palavras percorrem...

Procuro um nome de batismo, um nome que me vista, um nome que seja eu

Para quando, então, você o falar 
Que seja eu inteiro reverberando em ti.
Para quando o amor me surgir
Que consiga saber quem eu sou.

08/08/2020

Nocturno n. 7

Plantas: flores ornamentais, grama, mato, árvores.

Animais: domésticos, aves, anfíbios & répteis, insetos.

Coisas: iluminação das ruas e casas de alvenaria e ligas de metal e caixas d'água e telhas de barro.

Gentes: das mais variadas cores, biotipos, personalidades, costumes.

Espaço: lua, planetas, estrelas, nuvens, sol.

Sons: buzinas, crianças brincando, latidos, cocoricós, motos, conversas, músicas, anúncios, sirenes.

Eu: 

e tudo respira.

27/07/2020

Ad Libitum

Nunca espero a visita
da face de meu pai
mas ela surge e
atravessa minha memória
com aqueles olhos de pai
e a voz de senhor-pai.

Deliberadamente, às vezes, 
esqueço dos cabelos brancos de meu pai
as rugas de pai
mãos firmes de grossas veias de pai
camisa-e-calça como fora 
acostumado. 

Com alguma frequência
me pego pensando 
nas palavras de meu pai
e em tudo o que ele não disse como pai
e as coisas de pai que ele fez: 
a educação às crianças.

Sempre pai, 
com as histórias de pai
e o jeito, que ficou em mim
- o de sempre pedir bença-pai -
e carrego nas costas 
não como fardo 
mas como capa.

De meu pai, o que não recordo, construo
e o vejo como filho:
deslumbro e vivo a poesia me dada. 

                                                        *

Dou um último adeus - silencioso - ao meu pai,
Barão das Quinquilharias. 
Eu o procuro nas pequenas coisas deixadas:
parafusos, grampos, fios,  folhas de papel intactas sobre
                                                                [sua escrivaninha...
Por que não levou, meu pai, todas as coisas com o senhor?
Foi desleixo ou foi cuidado teu ato de ir embora, de supetão,
deixando tuas ninharias ao alcance dos nossos olhos?

Não encontro meu pai no sofá de sempre:
há um espaço vazio entre as coisas e as palavras.
Quisera eu ser menino de novo, meu pai, 
e estar deitado em sua cama, olhos entreabertos
                                                              [fingindo dormir, 
te ouvindo me ninar com aquela música
que nunca mais esqueci:
mãezinha do céu, eu não sei rezar...

                                                    *

E como são as coisas: 
em cada roupa minha há uma costura de meu pai.
No futebol que não joguei, nas escolhas que não fiz
Toda a lacuna que houve - meu pai ajudou-me a completá-la.
E agora, nessa procissão, caminho sozinho: pai de mim mesmo. 
E que palavra pequena - pai - para caber toda a história de homem.
Sangue do seu sangue, meus olhos embotados 
Parecidos com os seus:
um negócio assim, meu pai, que era teu e eu emprestei
                                                                [sem data de devolução.
Me cobre um dia. 
Agora, eu cubro tua partida. 

25/05/2020

Don Juan às avessas

soy un poeta
sin corazón:

nadie me llama
de Drummond

08/04/2020

Mil e tantas noites

silêncio na city:
na rua, só a rouquidão das motos
- entregadores de apps que nunca dormem -
e o latido dos cães
(certamente conversam entre si,
já que todos os seres têm algo a dizer)
laceram a noite.

mas aqui dentro uma orquestra
de quase imperceptíveis sonidos
me coloca no meu lugar no mundo
- sou o que sou e estou bem aqui
entre pensamentos e palavras
entre emoções e desejos

no interior do brasil
numa capital provinciana
meu coração naturalmente preocupado
ouve as notícias internacionais
e se consterna.

em quarentena
forçada pelas condições socioambientais
o quase poeta que habita em mim 
olha pela sacada 
as gentes mascaradas
os cuidados com a saúde
- a morte, que embala e nina
as gentes com nome e história...

é tarde, madrugada.
neste tempo
neste país
algum espectro terrível e monocórdico
nos dá sempre o mesmo tom
e as horas parecem sempre ser as mesmas
esgarçando, fio a fio, o destino da alegria. 

30/03/2020

Para escrever um poema

um poema
para ser escrito
demanda muita energia:
o poeta morre um pouquinho
a cada verso escrito
no hiato do que não diz
nas interpretações que lhe fazem

para escrever
o poeta precisa estar no não-lugar
que é onde os solitários pássaros cantam
anunciando o fim do mundo
e flores brotam no spleen esquecido.

é preciso que o poeta esteja
a par do que acontece no tempo presente etc.
e mitigue os corações preocupados
de homens e mulheres que não leem poesia.

no tempo presente o poeta vai sozinho
e sabe, como um sentimento que lhe fosse íntimo,
a hora em que tudo será ressignificado:
é ele quem conduz a palavra ao seu estado
ordinário
e assiste ao futuro ainda não anunciado.

12/01/2020

Tardio

o último poema que li
foi do amigo e conterrâneo
Carlos de Amorim:
ainda existia esse país
e respirávamos um ar precário
mas singelo.
desde então passo dias e noites
revirando palavras soltas
olhando pra parede estriada
ignorando a louça suja sobre a pia.

forjo agora um novo sentimento
na bigorna do amanhã:
ele corta e coagula
e o meu peito gane
na incerteza do que ainda não é.

e de repente
esses versos que escrevo
encontrarão morada nos livros
bagunçados da estante empoeirada
ou desaparecerão
em meio ao calor enquanto tudo derrete
enquanto tudo parece derreter¹



¹trecho de "calor", de Adriana Calcanhotto (2002)