quarta-feira

Verde

                                                                                                                  variações sobre Lorca

É para verdes que a quero verde

Em seu vestido de ramagens e sonhos.

Vejas, o amor de vez, fruto que se colhe aos poucos

Verdes ventos, verdes plantas...

Vejas que te quero ver 

De novo e de perto

Ver amadurecer nosso afeto

Em tardes inda não vistas


Verdade que te quero verde

Como a esperança, minha bandeira:

Verdes ventam nossos planos

Verdes vamos caminhando assim...

Verde,  e eu quero ver-te

Vestida assim:

Em mim

Chegada

Queria mesmo era que
Ao chegar em casa
Fosse você à minha espera
Não esse espelho
Grande, de corpo inteiro
Que me revela a minha imagem
Um jeito cansado da lida diária

Queria mesmo era
Que fosse seu corpo sobre o meu
Nessa cama imensa
E não Tereza, a gata,
Que dispensa pelos em minhas roupas
E mia, esgarçadamente,
Esperando meu toque paciente

Queria mesmo
Era ao teu lado
-Tua pele teu viço tua tez
Que distinguo e elejo na memória e no sonho-
Estar sentado tomando o café de sempre
Queria
Mesmo que eras 
Passassem 
E fôssemos 
Apenas nós, nada, palavra amor

terça-feira

Como amar-amor X

Às vezes, amor, penso 

Com o que te pareces

E te chamo de 

chuva em fim de tarde 

domingo de preguiça

passeio no parque


Te chamo begônia maculata

verde sálvia 

terra arada

primavera nos dentes









Como amar-amor IX

Amo como poema

E como receita

Amo como sentir 

Nas mãos o caldo

Para o ajuste do sal

E amo como 

Palavras temperadas 

De metáforas

Escorrendo pelas mãos

Como amar-amor VIII

Amo como se dizer que te amo

Fosse meu vernáculo

Como se a palavra amor

Fosse texto e imagem

Sentido e sensação.


Mas amo também fora

Da gramática:

Anseio um poema que te diga

Com todas as cinquenta e quatro figuras de linguagem

Que te amo

Como amar-amor VII

Amar como se inventar uma língua

Fosse sobreviver

Ao tempo

Como se todo léxico nomeasse

Nada além de amor

Como amar-amor VI

Quando, depois de um dia cheio,

O cinza-azulado começa a preencher

O quarto em que confessamos o amor

Na cama em que nos encaixamos

-Um quebra-cabeça de peças antes sonhadas-

É que tua pele me sussurra sentimentos

E a minha boca e a tua já 

Nada mais tem a dizer.


sábado

Como amar-amor V


Eluir um poema

Até que se distingua

Palavra de ação.


Diluir um verso

Para que sobre dele

Apenas o que não

Pode ser dito.


Observar em lamínulas

As amostras microscópicas

De onde se origina todo o amor

As células: vida se constituindo

Os sentimentos se aglomerando.


Amar, como se neurotransmissores

Reações químicas

E todo o corpo

E toda a matéria

Fosse senão sonho

Fosse tão somente amor.

Como amar-amor IV

 

Há muito o que fazer em casa:

Louças e roupas a lavar;

Além de varrer; tinir, transpor.


Na firma, trabalho é o que sobra:

A escrita, a escuta,

Docs pdfs txts xls


Na academia, os exercícios; no mercado,

lista de compras; na sorveteria: chocolate ou baunilha?


Mas eu

Incólume

Penso no amor,

Escrevo um poema.

Como amar-amor III

 

Jurei de pé junto:

"Amor? Só na próxima encarnação!"

Bradei aos quatro ventos:

"Amor? Pois eu quero é paz!"

Escrevi um tratado:

"Amor? Conta outra!"


Tsc. Psicologia reversa.

Era em tempo: falar no amor três vezes ele aparece...


E não tem capacete que proteja

e não tem santo que livre:

Amor escapa escorre espoca escreve

Anota!

Como amar-amor II

 

amar como um cão

que, ignorando a ausência

da cauda partida,

a abana insistentemente.


amar como uma ave

que traça no céu não uma rota

mas o absurdo

do imprevisível ar.


amar como um peixe abissal

que, desconhecendo a luz,

a inventa em seu próprio corpo

ferramenta perene da fome.


amar como pedra rocha bruta mineral raro

(que sabemos nós?)

como sedimento das eras

matéria prima de universo

ligação química

- serotonina; poema.

Como amar-amor I

 

amo como quem

numa corrida de cavalos

dispara por último

por puro prazer de lentamente

percorrer a pista

sem intenção nenhuma de chegar.


amo como quem vive da espera

a hora de escrever um verso

soltar a voz

respirar

e depois da pausa: tudo de novo.


amo como se não soubesse amar

como quando era criança

e na escola me ensinaram as letras

que eu já tinha aprendido em casa.


amo como se o amor fosse natural

um dia, ainda menino,

cuidei de um pardal até que voltasse a voar

quando chegou a hora

amei como se fosse asa

amei como se fosse espaço.

Aviso de Amor


afixado na parede carcomida

de uma birosca em bairro decadente

se escrevia a seguinte frase:

amar com urgência, mas sem pressa


e eu, que corro afobado tentando chegar logo

que tropeço nas palavras (para quê tantas sílabas?)

que só leio haicais

me demorei lendo o que se dizia.


amar com urgência

como se houvera um dilúvio

e tivéssemos que escolher entre declarar o amor

ou nos afogarmos.

como se, em espaço sideral,

o astronauta suicida revelasse sua paixão

antes de tirar seu capacete.


mas sem pressa, que amor é pra ser arado

só ama quem crê no fruto da árvore inda não plantada

sem pressa, como amam as mães os filhos no ventre

como aguardo que repouses tua mão no meu sonho.

segunda-feira

Labor

A poesia não sabe o quanto te devemos.

(Rui Costa)


trabalhava e já ia parte da manhã

no expediente na repartição 

entre um café e uma demanda

um relatório e mais um gole 

quando li pela primeira vez

num perfil de rede social 

versos de rui costa


anos atrás

precisamente vinte 

jamais eu saberia de rui costa

poeta em Porto 

que deixou o mundo à deriva cedo demais


sei de rui costa por causa da internet e do

bar do acaso - a pausa no expediente a exasperação do serviço

técnico burocrata o modo de vida produtivista ao qual somos submetidos

arrochados até sermos exauridos - que me deixou em vias de escrever um poema

(que não era esse e nem hoje e que ficou guardado na memória enquanto produzo planos de ação preencho planilhas no excel alimento sistema)


daqui do meu lugar, no interior dum brasil que dá notícias de que nunca chegará a lugar algum

carrego os versos de rui costa num smartphone 

e rememoro a poesia que me livra da vida de todo dia



 


domingo

Passagem no tempo IX

(...)e bandos de nuvens que passam ligeiras
pra onde elas vão? 
ah, eu não sei, não sei

(Dindi - Tom Jobim)


as horas contidas no relógio 

- sistematizado dividido elaborado 

doze mais doze 

& depois sete 

& depois quatro ou cinco 

depois mais doze 

e sempre se repetindo nesse fluxo contínuo 

que surgiu bem antes de eu nascer 

e perdurará após minha morte 

trabalho cinco ou seis

descanso dois ou um

assim aprendemos 

tolerância de quinze

almoço de quarenta e cinco

assim prosseguimos

mas há aquele momento e sempre haverá

quando o vento das circustâncias toca de leve 

um sonho um não dito um sequer imaginado

e já não importará a que horas o dia nasce

ou como se põem as tardes

ou mesmo o que significa a noite

aquele momento

em que o vento das circunstâncias

- vendaval ou brisa que sei eu?

bagunça o tempo

altera o que sentimos

(na aflição, as horas não correm

no amor, desembestam)

e já nada mais importa

cedo ou tarde mais dia menos dia

só o tempo dirá



quarta-feira

Contíguo

- convém que tenhas um

coração de sisal:

atadas todas as tramas

fibra força forma firme faça

bom proveito


mas o meu coração de poeta

projeta-me em tal solidão 

que o material com que foi feito

não poderia ser outro 

além de evanescente sonho


coração bobo, coração bola

contíguo ao pulmões

esses sim feitos de rocha limo ar citadino-poluído

polidos pulmões que não gritam à revelia

e revelam o estado de profunda respiração

- calma.


se estiveres em busca de um coração 

compre-o em casas de construção

reforce-o cimente-o pá de cal isolante térmico

todo cuidado é pouco!


eu, por minha vez, 

fiz das tripas coração: 

e prossigo a procissão 

de ser eu de vez.