terça-feira

Memória

cheiro da casa de minha vó

os retalhos piso de madeira doce de amendoim

bibelôs e fotos 

romãzeira grama galinhas e porcos


geografia da casa de meus pais

banheiro sem janela

quarto-dispensa de bagunça

corredores musgosos telhas de amianto

na infância um velho quartinho dos fundos

mistério e encantamento


a memória é uma ilha de edição disse o waly

tudo o que não invento é falso disse manoel 

e eu, por minha vez, não digo é nada:

rememoro 

                                como se ruminasse 

um lugar um cheiro um gosto um gesto 

coisas que me tomam de assalto quando passseio

pelas ruas do interior

por dentro de mim 

e nas canções que ouço de quase-sempre


às vezes me esqueço das demandas de trabalho

dos amores que tive e também de comer frutas e tomar água

mas lembro palavras esquecidas em dicionários

dulcissonante ilídimo tauricórneo


história das cicatrizes do meu corpo

noites de cerveja dias de amor e de guerra 

nunca tive sangue nas mãos 

guardei-o todo para o coração


e vou viver




 


sábado

Presente

desenlaçar o amor 

- um presente embrulhado em papel colorido

dobrar cuidadosamente a embalagem do amor

& mantê-la em local seco e arejado

desvendar o amor 

cada peça engrenagem encaixe detalhe

brincar com o amor

(que ora se fantasia de gente ora de sonho

mas que é sempre simbiose e ideação)

dar nome ao amor

e colocá-lo em prateleira

para admirá-lo sempre que quiser.






segunda-feira

Cuiabá, 8 de Abril

1.
um cambacica se banha
às 10h da manhã
num dos buracos da av. fernando corrêa

2. 
nos trilhos abandonados do VLT
uma trama dickeana 
é escrita em ferrugem e lama

3. 
por ocasião de ser
o centro geodésico da américa do sul
cuiabá tem coração grande
mas artérias entupidas

4.
decidiu-se na cidade
em convenção realizada 
num quintal cuiabano 
projetado no metaverso
que seria necessário derrubar todas as árvores
pois o título de cidade verde
já não nos cabia mais:
era preciso modernidade
concreto & aço
casas parecendo consultórios
porcelanatos e cimento queimado

assim, adentrando ao século xxi,
cuiabá passa a ser conhecida como
a cidade mais quente do brasil 
título que a elite comemora
sob ares-condicionados 
instalados na sala de estar. 

5.
mas ainda há amor em cuiabá
que brota em cachos de ipê
que rói pequi e toma canjinjim

ainda há amor em cuiabá
trafegando pela miguel sutil
espelhando em towers gardens malls  

mas ainda há amor em cuiabá
na pele suada, no bronze involuntário
no sol no sol no sol


*

rasgo mapas
traço rotas
invento lugares
pra te ver
até que, afinal
fiquemos cerzidos os dois

Procura

faço um caça-tesouro pela casa

procuro teus vestígios:

teu cheiro inda incensa o quarto 

no espelho parece que te vi de relance

busco uma ninharia esquecida

e nada!


faço um caça-palavras pra passar o tempo

procuro teus predicados: 

tua voz ecoando meu nome 

vocativos que inventamos para nós 

o verbo que pensamos e enfim dissemos

tudo!





sábado

As Cercanias do Amor

Construímos nossa casa nas cercanias do amor:

Ele era um bosque de mata aluvial 

Onde se achava de angico à sarã

Saguis e cobras-cipó

E lambarizinhos nas sombras d'água.


Nossa casa ficava ali, ao lado do amor.

Adentrá-lo, só se fosse por um trieiro 

Chão irregular, placa de orientação nenhuma

Era preciso coragem de se perder

Era preciso receio do que pudesse encontrar.


Tínhamos um jardim em nossa casa

Onde as plantas cresciam ordenadas:

Canteiros & vasos

Mas, logo logo ali do lado

No amor

O que crescia não sabíamos só de vista 

Era preciso percorrer caminhos

Era preciso cheirar, tocar, provar do fruto 

Ouvir o vento, assoviar aos pássaros. 


Levantamos nossa casa no limite do amor. 

Já se via brotos de ipê crescendo nela 

Certa vez encontramos um ninho de sanhaço 

Bem junto à cabeceira da cama

Outro dia uma paca pastava nossa ráfia:

Era preciso deixar que o amor tomasse a casa

Era preciso cultivar o inesperado, o que não previmos.


Já não sabíamos onde começava o amor.

As raízes de suas árvores já habitavam nossa sala

Pequenos répteis decoravam a parede do banheiro

E mesmo um pedacinho de rio brincava na varanda

Era preciso abrigar o que era natureza

Era preciso contemplar o que nascia em nós.

domingo

saudade

A casa vista a partir da rua
alguns poucos metros de quintal 
uma varanda
grama pé de árvore ladrilhos de ardósia:

a saudade é muitos tijolos 
pregos que sustentam a estrutura de madeira
onde plantamos o amor 
um pouco de erva daninha 
e também um pouco de fertilizante

a casa vista de dentro
cômodos recém pintados
quarto sala cozinha banheiro
móveis quadros flores gatos:

a saudade passeia por entre objetos
é um cheiro de jasmim que ficou de insistente
a cor desbotada da toalha de mesa
uma fruta esquecida na geladeira

a cama, o sofá, cadeiras de vime, almofadas de jacquard
espaço para que descansemos
lugares em que nos encontramos
todas as palavras ecoando na tua ausência

a saudade é vinco no lençol amarrotado de véspera
uma lâmpada esquecida acesa 
um gesto visto de relance no espelho 
um recado que você deixou sobre a escrivaninha
e eu leio enquanto te espero  

quinta-feira

Eurídice

 I. 

Pela manhã, é teu cheiro que me desperta 

como a primeira claridade do dia

como um sonho que eu já pressentia.


II.

Ficamos os dois enredados

trama complexa sobre o linho do lençol

natural que nos misturássemos: 

cada pedaço de mim inda carrega

a matéria do que é feito nós


III.

Cuido teu sono como se pastoreasse 

um rebanho de afetos 

pela noite, o mistério do que somos

se desvela em tua respiração

no que não dizes, mas sei.


IV. 

É preciso que nossos olhos se encontrem

no apagar do último dia

assim como é preciso

que um beijo de despedida

seja o devorador de um mundo

seja o criador de outro


V. 

Houve a distância de centenas de quilômetros

algumas confissões tantas músicas uns poemas 

e enfim nosso nome circunscrito na voz do outro

mãos cravejadas de possibilidades

bocas murmurando amor


VI. 

Basta que eu feche meus olhos

para que tua voz reverbere por todos os meus pensamentos

basta que eu abra meus olhos

para que te sinta na presença das coisas todas que ainda não descobrimos




sábado

Nocturno n.9

É noite e enquanto espero seu regresso

Escrevo um poema pago contas alimento o gato rego plantas

Lembro de um verso de Borges 

No quintal conto algumas estrelas no céu

Escuto nossas playlists leio notícias rabisco à mão um bloco de anotações procuro no dicionário o significado de uma palavra que jamais usarei

Canto no tom aquele frevo axé

O relógio revela que é madrugada 

Assisto vídeos nas redes sociais encho as forminhas de gelo verifico o aplicativo do banco deito sozinho

Fecho os olhos e finjo que você existe aqui


Metafísica das horas

 I.

Porque então já era tarde

E nos encontramos na curva das horas

Que passam de acordo com seus próprios interesses

II.

Sonhamos o enlace das mãos que não houve

Como também não poderia ter havido 

Palavras secretamente amorosas

III.

Quando alguém vai embora

Sempre deixa vestígios 

Pra não ser de todo esquecido

Sempre deixa impressões

Que não podem ser reveladas

Sempre deixa

Sempre esquece

Sempre abandona

Um gesto um sonho um beijo

IV. 

Quando eu te vir da próxima vez 

Permita que eu feche meus olhos

Para contemplar no escuro das pálpebras

A lembrança do que não fomos

V.

Existe um tempo impossível de ser apreendido:

Nos primeiros instantes da manhã

Depois de uma noite em claro plena de lágrimas

Quando o primeiro pássaro gorjeia

Anunciando que há vida demais lá fora