30/06/2019

Importância

Já não importam:
nem meus olhos cansados no espelho;
nem as tristes memórias da infância;
nem o que cresce desordenado dentro
                                                         [de mim.
Nada, nada disso importa:
a pele eriçada pelo frio;
as leituras de domingo à noite;
os filmes que vi sozinho,
sonhando em ser artista.
Não importará o dito
e o desdito do passado,
nem importou quantas vezes
os planos futuros tenham se modificado, simbióticos,
como uma segunda pele
abrangendo tudo aquilo que eu quis viver. Quando você chega eu sou outro,
alguma coisa que nem sei desvendar,
um menino descobrindo o mundo
e os teus olhos,
querendo desbravar teu coração,
ouvindo tua voz que me desloca
                                                 [e conforta.
Quando você parte,
quem sou eu mesmo?,
centrado no que não sei,
mas que imagino e sinto e vivo.

29/06/2019

Rara flor

eu contei
estrelas nos teus olhos
enquanto contavas
das tuas raízes
rara flor
brotando em meus espaços
uma forma pressentida
o cheiro de memórias
circunscritas pelas palavras
(as que dizemos e as que calamos)
enquanto eu cantava:
você contando comigo
- terra adubada
crescendo em mim
orquídea azul
colhida com minha poesia
um conto fantástico
desses, que não sabemos o final.

27/06/2019

Espelho

quando hoje acordei
ainda fazia escuro
acendi a luz do banheiro
e me olhei no único espelho da casa:
era eu mesmo quem refletia ali
- olheiras profundas,
rosto envelhecido
poros, pelos, cicatrizes,
cartilagem, lembranças.

e pela pequena ventana
uma brisa, sopro de existência:
havia vida lá fora
e o mundo inda respirava.
haveria àquela hora da manhã
quem saísse para o trabalho
quem dormisse nos lençois
                               [amarrotados de amor
quem chorasse e quem nascesse.

e haja eu para tantos acontecimentos!

num instante
fui tantos e outros:
Mas quantos Césares fui?

25/06/2019

Corpo

meu corpo é um templo
e eu o incenso com o cigarro
e eu o benzo com a cerveja
em línguas mortas eu conclamo
(e condeno)
um Deussurdo
exorto meus fieis
- os demônios interiores
com quem ceio e combato.

meu corpo é o que me cabe
nessa segunda década do século xxi
como tantos outros
que negam Vênus
esteriótipos
padrões estéticos
meu corpo riscado marcado
atravessado de gente.

meu corpo que sente e sofre
e quer e é:
Existo nele e nele vou morrer:
um templo de alguma civilização
que só existe em mim.

06/06/2019

As mãos

As linhas das minhas mãos
segredam um poema de amor.
Nas pontas dos dedos
as impressões digitais
que me diferenciam de outros
da minha espécie
me fazendo único;
gente.
Nas cicatrizes, nas pintas
nos calos
nas unhas: leuconíquia.
Sob a pele, que ora enruga,
ora resseca:
há o labor de um poema.
Nessas mesmas mãos
dadas ao trabalho e ao amor
que seguram objetos
que escrevem mensagens
que aplaudem e se comunicam
- mãos de poeta.
São nelas que mora o poema
aquele que eu escrevo
e que chega aos olhos
sabe-se lá de quem
e que o sentirá
- préstimo ou provocação -
com outros sentidos:

minhas mãos escrevem
um poema de amor;
eu amo.

03/06/2019

Passagem no tempo VII

minha poesia,
arena de disputas:
ruge o amor
avança o poema
meu coração espraiado
desfeito em areia dos tempos
e a plateia, a delirar:
que vença o que sobrar de mim.

nesse coliseu, já não há imperador.

01/06/2019

De novo, o amor

                           Pronto, o amor se estrepou.
                                                     (Drummond)

As vestes rasgadas, o lábio gretado
Levanta-se o amor mais uma vez
Verte sangue o plexo ferido
Aproxima-se o amor, já o vejo bem
Escoriações pelo rosto indefinido
Chega o amor perto de mim
Nas mãos, afeto
Nos cabelos amarfanhados, canções
Exala um cheiro lírico
Descalço, parece o amor não se importar
Com as pedras, paus e espinhos
No caminho cotidiano
Sussurra em meu ouvido o amor
(essa voz de eras, em todas as línguas)
- vem, poeta, me acompanhar

E eu, que lhe negara três vezes,
O sigo pela estrada que vai dar onde
A poesia mora.