24/06/2021

Fragmento I

Eu gosto é

De comida amanhecida 

Que guarda um sabor de sol. 

23/06/2021

Casamato

Cresci em uma casa
Cujo quintal não dava muitas plantas
A não ser mato
Que crescia
Engruvinhado e muito verde
Em uma terra argilenta

Por mais que o arrancássemos
- e eu era só um menino -
Ele tornava a brotar
Mais forte e decidido
Verde e muito engruvinhado

Aprendi então
Que meu destino era o labor
De deixar que vença
Tudo o que não posso reter:

Minha poesia, ainda verdolenga
E meu afeto, um tanto embaraçado


22/06/2021

Costura

 Atravesso a city para te ver:

Sou algum homem entre tantos homens

Mas carrego um afeto menino

Descobrindo de novo o nome das cores


Cindindo ruas, procuro coser meu coração:


É tua linha tons-de-dia que eu encontro...


E meu coração alinhavado se conserta em nós

21/06/2021

Manada

 Uma manada

De quinze elefantes

Cruza

Rios, pontes e overdrives

Em direção à desconhecida

Canaã de sua espécie. 


Cientistas não conseguem

Entender as motivações dos animais: 


São humanos demais e carregam um sonho

Pendurado nas orelhas. 

20/06/2021

Enquanto dormes

Enquanto dormes

O tempo continua a seguir:

Sobre teus ombros cansados

As constelações distraídas se movem 

Sob teus pés, flores: quem sabe plantadas por ti...

Teus olhos fechados sonham talvez

Um gesto não expresso: 

E há o mundo, a pele, a dor e a revelia

Das coisas todas que não lhe cabem nas mãos:

Tudo desperta e é e sente...

Repousas: Natural que seja:

Guardada por tudo o que te abriga

(tudo o que tens e és e sentes!)

Enquanto gira o mundo e a ordem das coisas

E as supernovas explodem anunciando 

Qualquer possibilidade de vida

Descansa teu corpo, um sono tranquilo:

Dormem também tuas palavras e tudo o que não me dizes...

E eu te vejo e te velo e te sei:

Dormes como um botão de petúnia

E eu te desperto em pétala

Em cores, em luz. 

haikai noturno

Nomeio as estrelas

No escuro dos olhos do meu amor: 

e é o signo a nossa potência. 

06/06/2021

Novíssimo Hino Nacional

Aguarda para ser identificado

Na sala de autópsia

Coberto por um pano de cor indefinida

O Brasil

Caberá a artistas fazer o reconhecimento

Desse corpo: 

Suas matas e rios

Seus bichos e céus

Mas também sua gente

Que lhe habita os intestinos e pulmões.


Depois de analisado

"É mesmo o Brasil quem morreu"

Deveremos enterrá-lo

Sem coroa de flores, homenagem ou cafezinho

Em vala comum, vala de brasileiro

Jogando sobre ele as terras todas

Quanto forem necessárias

Improdutivas e não-demarcadas

E deixá-lo ali descansando 

Sem jazigo que o represente.


Creremos, nós artistas, que dali

Brotará quem sabe num futuro longíquo

Uma árvore que frutifique

Raízes alimentadas da ideia de Brasil

E dê de comer aos pássaros 

Os novos habitantes desse lugar.


Depois de o Brasil morto e enterrado

Seguiremos com a lembrança do que

Poderia ter sido

E que nunca será: 

Rememoriaremos o Brasil boa-praça

Jeito menino sempre sonhando alto

E pronto a ajudar quem lhe necessitasse.


Quem sabe no futuro 

Não teremos um novo Brasil? 

Um filho bastardo

Vivendo escondido nos rincões por aí

Disposto a ser ele mesmo:


Um outro Brasil.

05/06/2021

Nocturno n. 8

Em horas como essas

Quando a noite desvela seus mistérios

E o canto dos pássaros é agouro puro

É que cicio meus poemas 

(Os versos que escrevi colhendo palavras frescas

As rimas que inventei catando cacos de sílabas)

E com as contas que carrego junto ao punho

recito outros poetas, os sórdidos e os 

consagrados

Todas as palavras que aprendi 

lendo mulheres e homens, poetas: como eu;

Vivos ou mortos: como eu;

Gente, sobretudo: como eu ou você.


São em horas como essas

Quando a luz precária dos postes 

adornados de panfletos 

Não ilumina o acaso o que há-de-vir

o que-será? 

Que eu mastigo um verso esperançoso

Do qual me lembro apenas das palavras

- é tarde demais para as metáforas!

Que eu: punhos cerrados dentro do 

bolso da calça

Enfrento o tempo o medo a cidade

- Um poema como patuá -

Carrego meu sonho de menino

A fé no futuro, no peito um coração

E você, como eu.