quando criança
não tive amigos:
brincava com o outro eu
de emoldurar olhares
um sabiá sempre me assistia da goiabeira
cantava três vezes e eu negava
aquele mundo todo
um dia, pedi ao próprio deus
que me tornasse poeta
o sabiá, naquele dia, não cantou, não:
fez foi bicar uma goiaba
coçar a asa esquerda
e voar pro nunca mais
entendi, de repente, que
ser poeta é coisa que não se pede.
12/10/2019
Infância
29/09/2019
o dever do poeta
caberá ao poeta deste século
contar a história
do que restar de humanidade:
nas mãos do poeta
a palavra que se escreve
polifônica e inexplicável
captando o mundo que se arruina.
(pululam nos jornais letras mortas
nos noticiários nas leis no rosto
de quem morre a cada dia para se manter vivo há o gosto acre de silêncio e pesar)
é papel do poeta ler a vida
e explicar às futuras gerações
o que nos sucedeu:
como João, também cantaremos
o apocalipse
- não em sonhos e visões,
no cotidiano que se descortina
diariamente.
(fome, guerra, peste e morte em seus cavalos blindados atropelam as gentes todas que insistem em sobreviver)
o que sobra ao poeta
é inventar sua poesia
mas deve se apressar:
amanhã, talvez, as palavras já tenham
abandonado o dicionário
e sobrará só a barbárie
que não pensa em nos deixar.
23/09/2019
Chuva
como se nunca chovera antes
e a palavra chuva
só existisse no romance
de gabriel garcía márquez
chove e sinto de novo
o cheiro de pátria, terra em que vivo
e trabalho e suo e ajo
chove uma água suja, de certo que sim:
ácida como a vida entre os trópicos
devastando a sede desses animais
tudo o que passou, chove
tudo o que virá, chove
e chove no beco do candeeiro
no goiabeiras
sobre os automóveis
entre os viadutos
chove em cuiabá:
como se não parecesse chuva
e fosse só um alento
gesto do mundo que ainda respira
14/09/2019
Fruta
desprendeu-se do galho o amor
de maduro foi ao chão:
um fruto simbiótico
cor de gente, gosto de sonho
se intocado, adubará a terra
decompondo tudo aquilo que é memória
(os gestos palavras intenções
e também aquilo que não foi mas tomou lugar no que era nós)
alimento para os insetos
matéria viva que se transforma
- eis o mistério da fé:
o amor no chão, o chamamos podre
mas é um ventre que criará nova árvore
vida rompendo o amanhã.
28/08/2019
Vestígios
limpo minha casa
para apagar teus vestígios:
os fios de cabelo
- escuros como a primeira noite
desde que partiste -
teu reflexo no espelho
que inda consigo ver
e o cheiro de fruta misteriosa
impregnado pelo quarto
despejo em herméticos sacos plásticos
a poeira do que restou de nós:
pensamentos e palavras
atos e omissões
e qualquer indício de presença
os cacos do que não fomos
- com cuidado eu os descarto
pois cortam feito faca.
organizo meus cômodos
meus móveis repletos de tuas digitais
e cansado da lida
me sento no sofá que tanto te abrigou:
sou eu só, aqui, em mim.
25/08/2019
Carmesim
tuas unhas carmesim
rasgando minha embalagem:
meus dias e noites
meu nome e meus versos
dispostos, carmesim, sobre meu silêncio
- as palavras que não dissemos
voltaram ao dicionário:
restou um afeto,
que guardei com teu retrato
memória que se dissolverá.
tua boca carmesim
a voz ecoando em meus espaços:
a sala, o quarto, o ouvido
meu coração, carmesim, amplo ambiente
onde festejo e celebro a vida
e também enterro meus fracassos:
o amor que não houve
o filho que não existiu
o futuro que era vidro e se quebrou.
espero uma nova manhã carmesim
vermelha como o sangue das paixões
como um sonho que se sabe vivo
como a pele rubra do tempo
que renova minha crença e meu querer.
11/08/2019
Fera
vive dentro de mim uma fera
que ora ruge e me assusta
com sua voz de intempérie
mandando que eu desista
de tudo
e de mim
e de você
e daquilo que nem ainda sei
[se existirá
uma fera em mim:
bicho altivo, cor de ódio
faiscantes olhos iluminando
minha insegurança
meu medo da morte
minha vida medíocre
de poeta e professor
em mim mora um animal
que me mastiga e deglute
e eu viro um pedacinho de nada
palavra calada
verso triste
vez em quando esse bicho
dorme um sono profundo
cansado de tanto se mostrar grande
então eu aproveito
e o prendo de volta bem dentro de mim
(posto que o crio há anos)
e canto-lhe canções de ninar
afagando-lhe os pelos revoltos
com minha poesia e o amor
que trago entre os dedos.
10/08/2019
Poema de aniversário
onde ecoam tuas descobertas
tua constelação formada e cintilante
tuas órbitas e do que delas se desprende:
o universo na tua cabeça
- céu escuro às vezes
claro sorriso iluminando o dia:
renovando as possibilidades de mudança
pois tudo ecoa e vibra e vive
mesmo quando a terra seca
e faltam horizontes
(as nuvens são feitas de matéria mutável enquanto que o sonho é intransponível)
e tudo é cor: os traços da pele,
a luz que de ti emana,
e mesmo o que te assenta
e se cala,
e aquilo que ainda te falta
e vem de lá de onde não tem nome:
da dança dos astros, do teu corpo
- rota imprevisível, que ensaia uns passos
e sente e canta e quer.
e na primeira manhã do teu novo ciclo
seja sol, colorindo teu próprio caminho.
07/08/2019
Manual de Ícaro
para voar, você precisará de:
- duas asas inventadas, feitas de tempo etéreo;
- um tanto de amplo espaço, que pode ser medido pela distância da saudade;
- ternura convém, como proteção e
- um sopro forte de coragem, a de voltar e a de olhar a vida pelo alto.
as asas podem ser feitas misturando 'liberdade de saber quem se é'
e 'memórias compartilhadas de pertencimento',
para dar liga.
as asas devem ser cuidadosamente abertas: observe se nelas não há sombras do medo.
as plenas condições de voo se dão
nas primeiras horas do dia
quando o sol ainda não despontou
e o céu ainda tem a cor do amor
e dos amantes.
ao planar, se lembre do mais importante:
manter o equilibrio e o querer-bem.
04/08/2019
De repente
de repente
foi um vento
que passou pela gente
e dispersou palavras
- as que falam de nós
e despediu as nuvens
cinzas grossas
que cobriam um afeto
e bagunçou meu jeito de poeta
e meu poema ficou
desse jeito assim:
enventado.
*
de repente, não mais que de repente
esse vento trouxe o que se sente:
um gosto de nós
que inventamos na pele
do tempo.
26/07/2019
Três palavras
o homem circundado de estrelas
hospeda no céu de sua boca
três palavras
capazes de calar o mundo:
não é tempo ainda que as diga
embora estejam
esperando liberdade
para ecoar por onde quer
que seja preciso ouvi-las:
no trabalho na rua por entre
os carros e também nas antenas
de comunicação e em teus ouvidos
o homem contempla o espaço
onde moram os deuses
e onde cabe o retrato da mulher
a lembrança daquilo
que ainda está por vir
e as três palavras
impronunciáveis
mas vivas dentro desse corpo,
universo.
16/07/2019
Dialética
pergunta se te amo desse jeito.
decerto que não:
amor não dá assim na gente
nem se identifica logo de cara
não tá na pele no gosto no cheiro
amor não se colhe nem se contrai
amor não é roupa que serve
e se não serve se remenda
nem é comida que esfria
e, passada a fome, se esquenta
pra de novo comer.
assim não te amo: procurando amor.
pergunta, e perceba o meu amor:
o vão entre os dedos
que se encaixam
revelando a imagem de um quebra-cabeça sentimental;
a voz, que de tua boca sai,
urgentes ondas sonoras
que logo chegam aos meus ouvidos
e o cérebro decodifica
- afeto e memória;
o olhar que se reconhece:
o amor habita na luz
quando me vê tal como eu sou
e quando te vejo e
tudo o que é.
amo o que está no tempo de nós
as horas, os dias, repetitivos como são,
ressignificados como os tornamos;
amo o espaço entre os dois
as cercanias dos corpos
o limite do que toca.
amo o que não somos:
as palavras que não dissemos
o futuro que não se deixa conhecer
assim te amo: encontrando em mim
o amor.
08/07/2019
Quintal
o amor é o meu quintal:
nele disperso sementes
de palavras
que crescem como mato e
adornam esse chão de solo seco
- as circunstâncias que me ocorrem.
o amor é um pedaço de terra
onde plantei com esmero
uma árvore de sombra boa
para que tu descanse
das tuas jornadas
quando quiseres.
o amor: tive que retirar
dele os cascalhos, restos de
palavras mortas, raízes antigas
amargas.
no amor brincam os bichos
as aves, a procura de alimento
borboletas formigas besouros
passeiam pelo amor...
e é nesse amplo espaço
- que não é organizado como um
jardim artificial -
que te espero:
se vens, talvez plantaremos juntos
flores desconhecidas.
30/06/2019
Importância
Já não importam:
nem meus olhos cansados no espelho;
nem as tristes memórias da infância;
nem o que cresce desordenado dentro
[de mim.
Nada, nada disso importa:
a pele eriçada pelo frio;
as leituras de domingo à noite;
os filmes que vi sozinho,
sonhando em ser artista.
Não importará o dito
e o desdito do passado,
nem importou quantas vezes
os planos futuros tenham se modificado, simbióticos,
como uma segunda pele
abrangendo tudo aquilo que eu quis viver. Quando você chega eu sou outro,
alguma coisa que nem sei desvendar,
um menino descobrindo o mundo
e os teus olhos,
querendo desbravar teu coração,
ouvindo tua voz que me desloca
[e conforta.
Quando você parte,
quem sou eu mesmo?,
centrado no que não sei,
mas que imagino e sinto e vivo.
29/06/2019
Rara flor
eu contei
estrelas nos teus olhos
enquanto contavas
das tuas raízes
rara flor
brotando em meus espaços
uma forma pressentida
o cheiro de memórias
circunscritas pelas palavras
(as que dizemos e as que calamos)
enquanto eu cantava:
você contando comigo
- terra adubada
crescendo em mim
orquídea azul
colhida com minha poesia
um conto fantástico
desses, que não sabemos o final.
27/06/2019
Espelho
quando hoje acordei
ainda fazia escuro
acendi a luz do banheiro
e me olhei no único espelho da casa:
era eu mesmo quem refletia ali
- olheiras profundas,
rosto envelhecido
poros, pelos, cicatrizes,
cartilagem, lembranças.
e pela pequena ventana
uma brisa, sopro de existência:
havia vida lá fora
e o mundo inda respirava.
haveria àquela hora da manhã
quem saísse para o trabalho
quem dormisse nos lençois
[amarrotados de amor
quem chorasse e quem nascesse.
e haja eu para tantos acontecimentos!
num instante
fui tantos e outros:
Mas quantos Césares fui?
25/06/2019
Corpo
e eu o incenso com o cigarro
e eu o benzo com a cerveja
em línguas mortas eu conclamo
(e condeno)
um Deussurdo
exorto meus fieis
- os demônios interiores
com quem ceio e combato.
meu corpo é o que me cabe
nessa segunda década do século xxi
como tantos outros
que negam Vênus
esteriótipos
padrões estéticos
meu corpo riscado marcado
atravessado de gente.
meu corpo que sente e sofre
e quer e é:
Existo nele e nele vou morrer:
um templo de alguma civilização
que só existe em mim.
06/06/2019
As mãos
As linhas das minhas mãos
segredam um poema de amor.
Nas pontas dos dedos
as impressões digitais
que me diferenciam de outros
da minha espécie
me fazendo único;
gente.
Nas cicatrizes, nas pintas
nos calos
nas unhas: leuconíquia.
Sob a pele, que ora enruga,
ora resseca:
há o labor de um poema.
Nessas mesmas mãos
dadas ao trabalho e ao amor
que seguram objetos
que escrevem mensagens
que aplaudem e se comunicam
- mãos de poeta.
São nelas que mora o poema
aquele que eu escrevo
e que chega aos olhos
sabe-se lá de quem
e que o sentirá
- préstimo ou provocação -
com outros sentidos:
minhas mãos escrevem
um poema de amor;
eu amo.
03/06/2019
Passagem no tempo VII
minha poesia,
arena de disputas:
ruge o amor
avança o poema
meu coração espraiado
desfeito em areia dos tempos
e a plateia, a delirar:
que vença o que sobrar de mim.
nesse coliseu, já não há imperador.
01/06/2019
De novo, o amor
Pronto, o amor se estrepou.
(Drummond)
As vestes rasgadas, o lábio gretado
Levanta-se o amor mais uma vez
Verte sangue o plexo ferido
Aproxima-se o amor, já o vejo bem
Escoriações pelo rosto indefinido
Chega o amor perto de mim
Nas mãos, afeto
Nos cabelos amarfanhados, canções
Exala um cheiro lírico
Descalço, parece o amor não se importar
Com as pedras, paus e espinhos
No caminho cotidiano
Sussurra em meu ouvido o amor
(essa voz de eras, em todas as línguas)
- vem, poeta, me acompanhar
E eu, que lhe negara três vezes,
O sigo pela estrada que vai dar onde
A poesia mora.
23/05/2019
Árvore
inscrevo na palavra árvore
o teu nome e o meu.
raízes de poemas
se aprofundam em mim:
bebem de ti o que não
está na superfície.
colhemos um fruto
de véspera
com gosto indefinido
debaixo de frondosa sombra
nos sentamos:
meus versos ramificados
tuas folhas inda novas.
daqui cem anos, mulher,
quando não mais houver
você ou eu,
uma flor branca brotará
na minha poesia:
quem a vir não saberá
da terra que revolvemos
da semente conjugada
da rega feita de sonhos e distância
do signo que cresceu sem podas
- do teu nome e o meu.
21/05/2019
Dorme
Os prédios e as torres de comunicação não dormem nunca, sempre imóveis, em pé, vigiando os céus e o que por baixo deles passa.
Dormem as gentes em distintas horas. Eu não, porque me ocupo em pensar na poesia que eu não poderia escrever.
Dormem a ira e a indiferença, dorme o riso, e a dor também há de dormir.
Dormirá o amor?
Fecho os olhos: não há sono. Você deve dormir, e eu devo cuidar do que nos foge às palavras.
O que tenho guardado em mim: dorme.
Aquilo que não sabemos: dorme.
Dorme o que é morte e o que é vida.
E o poema boceja.
13/05/2019
canção
pela testa
olhos
gosto na língua:
o sal
do suor
do pranto
do amor
pelas mãos
plexo
órgãos internos:
a força
dos gestos
das marcas
da vida
no pensamento
desejos
cinco sentidos:
o que coube
de ti
de ti
de ti
Ave
pássaro imóvel
observando a paisagem
esperando o que lhe cabe
voará?
- de certo que não...
asa de poeta é palavra
pluma de cores indecifráveis
tegumento ríspido
a espera do toque acidental
das circunstâncias.
24/04/2019
Milonga
Enquanto saio para trabalhar
Visto um chapéu
- por estilo e proteção,
já que é enorme o calor em Cuiabá -
Que, em seu forro,
Traz uma canção e um nome de mulher.
Enquanto observo a paisagem
Da casa ao destino.
A mulher, eu a procuro
No cotidiano que me embala
Entre dias e tardes.
Cansado chego em casa,
- Deito o chapéu à revelia,
sem, no entanto,
refletir sobre esse gesto -
É que encontro: mulher e canção,
Espalhados em minha pele.
Meu coração dança um tango
Esperando a hora
De ouvi-las, canção e mulher,
Sobre coisas que não sabemos explicar.
19/04/2019
Cinema
sou o personagem mais triste
de todos os filmes tristes
que falam de amor.
mas quando você chega
com seu cheiro de cassis
saio do meu papel
esqueço o roteiro
e já não sei
como te dizer:
um mise-en-scène sentimental.
18/04/2019
16/04/2019
Descoberta
descubro tuas palavras escritas à mão
como descubro teus olhos me fitando
tua voz rouca que vira e mexe me diz
como se simples fosse o ato de falar
sobre tuas ninharias tua vida os dias
descubro teu véu tua forma o cotidiano
revelo teu sorriso a foto que vi e guardei
e em mim escondido um sentimento bom
nele me apoio minha vida uns escombros
neles o que brota uma flor indefinida
descubro o que há de ti em mim
e vôo buscando tuas asas
tua célere despedida
o gosto do que sonhei pra nós
Entre teu nome e o meu:
a saudade fazendo sala.
13/04/2019
lá fora
fogos de artifício
- comemoração
silêncio cá:
não me arrebento não.
*
um vaga-lume solitário
percorre sua via crucis
sem saber que sua luz
desafia a cidade
*
se for vir, nem venha
que eu te boto no teu lugar!
(aqui, bem dentro de mim)
se vier, venha logo
logos: perdi o raciocínio.
*
se de mim sobrar algo
junte os pedaços
adicione algum tempero
e me embale pra viagem.
*
falando nisso
não vou nem falar
em boca fechada
só cabe seu nome.
06/04/2019
Cuiabá, 300
os bares e suas luzes
o sol secando roupas
molhando de suor os rostos
trabalhadores indo e vindo
maracanãs e sabiás
mangueiras e oitis.
a conta da energisa
o centro e a periferia
o futebol e os grafites
artistas intelectuais
vendedores ambulantes
pedintes estudantes
professores polícias.
os ricos em mansões envidraçadas
os pobres em bairros esparramados
rios e córregos torando a cidade:
meu poema.
(passarei: como passaram dom aquino, dicke, manoel de barros, sodré.
meu verso fica: não tem pra onde ir.
daqui a cem anos, outros poetas cantarão a cidade:
se ela resistir.)
29/03/2019
Amor
nas cadeiras de plástico
nas calçadas rachadas
no banco de madeira
corroído de cupins.
também o Amor pediu um pingado
e discutiu a situação política
do país
e falou do futebol de quinta
e tamborilou um samba.
logo o Amor! conhecido por todos
popular entre os jovens
- os mais velhos ressabiados...
simples para os amantes:
o Amor de sempre
e agora?!
trouxe um presente
não estava embrulhado
antecipei sua forma:
e desde então o guardo
no bolso esquerdo da camisa
onde também está a esperança
e a minha poesia.
23/03/2019
Tramontana
e galopo contra o tempo
procuro um verso
que nos abrigue
e nos anime
não houvesse destino
a que destino nos entregaríamos?
e no meio das coisas tolas
-o cotidiano dos meus olhos à tua procura
tua boca que não encontrou a minha
nossas mãos que não se embaraçaram
o gosto do até logo
e se fôssemos feitos daquela matéria
que vibra tal qual tramontana?
nossos corpos, buscando o norte,
seriam névoa e ternura.
17/03/2019
Poema Noturno
em noites de intenso calor
quando o mormaço impede o sono
leio uns poemas que me ajudam a sonhar
e penso na mulher
- que eu ainda não amo
e penso no amanhã
- que eu ainda não vejo
e vislumbro surgir no espaço das horas
todos os verbos que não escrevi.
de minha janela gradeada
por onde passa o vento morno
e os incólumes desejos
olho as casas
- e seus telhados de amianto
olho os prédios
- e suas luzes fluorescentes
e imagino o dia em que serei velho
como as palavras que admiro e decoro.
nesse intervalo entre o eu e o tu
é que se esgueira a poesia
salpicada de sentido
e o poeta sente o dever
de registrar o instante
- que ainda não existe
de perceber o afeto
- que já tenha acabado
e de viver participando das remissões
da vida.
07/03/2019
Algum poema
que transforme o tédio
em vendaval
imagino um poema denúncia
que vá atentar contra
o sistema estabelecido
reflito um poema manifesto
um grito em fúria
que não pode ser calado
sonho com um poema rebelde
um poema que derrube governos
mantra de liberdade e progresso
- escrevo um poema de amor.
16/02/2019
antipoema.
Aqui quem fala é o primo pobre, mais um sobrevivente
desse século, de segunda
década
em que se atropela de barbarismos
que não são vícios de linguagem
senão matéria viva e observável.
Até agora eu não achei a chave, Drummond.
Engolida pela Justiça,
que prende como quer
(na muralha, em pé, mais um cidadão José.)
deve ter entrado pelo cano
e agora, o que será da palavra?
Não vim ao mundo catar feijão, João
antes: eu nego o poema
quero a antipoesia
(eu era a carne, agora sou a própria navalha!)
o que nos consome
em tragédia e silêncio.
03/02/2019
Desabafo
pelas paredes da memória
construída aos trancos e rebocos
os corpos, nossos corpos,
esgarçados, tristes corpos, triste bahia etc
mas keep going e lá vamos nós
chove canivete! e lá vamos nós
bruma no horizonte: lá vamos:
clarão que se procura
e tá ali, ó, pelos poros
o sinal dos tempos
nosso grito adormecido
meus 32 dentes ecoando
a fúria que virá
(-Eu também não queria ser o poeta de um mundo caduco
mas vou fazer o quê?)
o que sobrar de nós: um pastiche pra comer com pão.